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Mitos de Shiva, Deus e Iemanjá - Criando deuses à nossa imagem e semelhança
Publicado em: 26 de setembro de 2008, 13:13:25  -  Lido 4318 vez(es)

Antes de mais nada, proponho quatro reflexões:

 

1. Quem criou os deuses à sua imagem e semelhança?

 

2. Se deixarmos de acreditar em um deus, ele continua a existir?

 

3. Deuses manifestos estão mais próximos dos arquétipos primordiais
intangíveis e atemporais, ou dos mitos que os represenram em uma
cultura, tempo e crença?

 

4. Não acreditar em deuses significa não acreditar em Deus?

 

 

Eu pedi Força... O Orixá me deu Dificuldades para me fazer forte.
Eu pedi Sabedoria... O Orixá me deu Problemas para resolver.
Eu pedi Prosperidade... O Orixá me deu Cérebro e Músculos para trabalhar.
Eu pedi Coragem... O Orixá me deu Perigo para superar.
Eu pedi Amor... O Orixá me deu pessoas com Problemas para ajudar.
Eu pedi Favores... O Orixá me deu Oportunidades.
Eu não recebi nada do que pedi... Mas recebi tudo de que precisava.

(Descrição da comunidade IEMANJÁ - senhora das ondas, das mudanças,
das marés. Se alguém reclama das mudanças do Shiva, experimentem só
pedir "mudança" para aquela que traz o equilíbrio e a vida a partir
dos altos e baixos das marés, rs)

 

 

Refletindo:

 

"Deuses" manifestos não existem: são expressões míticas de arquétipos de um inconsciente coletivo. Isso não traz nada de "cético", ao contrário. Se é claro haver algo transcendente até ao que nós chamamos de deuses e suas representações religiosas, isso implica inequivocamente na existência de um Brahman, Tao, GADU maior, atemporal - que provavelmente não criou nem foi criado por ninguém, e ainda assim É e Está. Podemos até chamá-lo de "Deus" mesmo - mas provavelmente seremos mal entendidos pelos céticos e religiosos.

 

Temos, todos nós, expressões maiores e transcendentais, falando por exemplo de uma Grande Mãe (que a Índia prefere Mãe Divina, e Portugal Virgem Maria), de um Grande Pai (Jeová para judeus, Tupã para os índios, Shiva para a maioria da Índia), de figuras sombrias angelicais ou divinais (Seth, Diabo, Kali) ou do arquétipo da transformação, movimento, renovação.

 

Quanto mais religioso for um devoto, mais verá UMA expressão particular - geográfica, cultural e até temporal - como a correta, o tradicional, o oficial, o literal: Em suma, a ORTODOXIA. O que se desvia disso a partir da observação, difusão, apropriação cultural e sincretismo (que SEMPRE ocorreram em TODOS os povos e manifestações religiosas) é, por exclusão, o heterodoxo - ou, dependendo da visão, o herege, o falso, o distorcido. De certo modo, a HERESIA.

 

Por exemplo, alguns exigem, dos brasileiros de simpatia hinduista, o resgate de tradições seculares da Índia, em detrimento de versões segundo eles "erradas" de se praticar yoga ou compreender os uppanishadis. Ora, a ortodoxia purista, seja cristã ou hindu, é uma forma de ver, bastante válida. Mas não é a única, nem sequer a majoritária, merecendo o mesmo respeito que as demais.

 

A título de comparação histórica, notamos que os deuses romanos, que foram importados diretamente do panteão grego, não são menos eficientes ou cultuados. Muito pelo contrário, difundiram-se, e readaptados, explicaram outras culturas. Afrodite tornou-se Vênus, Dionísio tornou-se Baco, Ártemis tornou-se Diana, Cronos tornou-se Saturno, Géia tornou-se Terra, Poseidon tornou-se Netuno, Zeus tornou-se Júpiter, Hades tornou-se Plutão, e muitos foram do Olimpo aos céus.


Imagine porém que algum purista viesse hoje, numa São Paulo de 2008, defender o culto original segundo as visões anteriores a Heráclito. Certamente nos lembraria que Mercúrio não é bem o mesmo que Hermes, que Eros diverge levemente de Cupido,e que chamando o planeta vizinho de Vênus estaremos pecando contra a Afrodite original. Este radical estará certo, em sua visão. Por outro lado, se as estruturas similares (arquétipos) são únicos, assim como a divindade-sem-forma-maior, os MITOS que os explicam (Shiva, Jeová, Jesus, Diana, Iemanjá, deus) são dinâmicos, regionais e culturais.

 

Shiva e Iemanjá em geral falam de transformação, de movimento. De destruição e de marés.

 

Numa leitura simbólica, a miséria material e o progresso espiritual da Índia (em grande parte, shivaista) poderia explicar a metáfora melhor do que eu: é do meio desta penúria material e mental, destruida por "Shiva", que nasce uma das maiores economias do planeta, em um país que exporta gênios matemáticos e computacionais, brotando dos escombros destruidos por "Shiva".

 

Em se falando da população mais simples, a que faz número nas ruas, nos rios, nas estradas, o indiano típico encontra-se tão distante do equilíbrio mente-espírito quanto o neurótico cristão ocidental de posição e classe
equivalente - ainda que no sentido contrário. O excesso desequilibrado com que um ocidental busca a matéria e quer o comodismo negando o espiritual e a transformação é exatamente a outra face do mesmo desequilíbrio oriental que os faz, não raro, aceitar demais, amar a transformação, desprezar a matéria, o prazer, a mente e aquilo que veio cumprir aqui. O equilíbrio jamais reside nos extremos.

 

No meio dessas crenças e equívocos, querendo ou não, surgem as egrégoras e a espiritualidade. É uma ilusão pensar que o homem é uma ilha, e que a mente é individual. A MENTE HUMANA É COLETIVA. A vida não é a flor, e sim o jardim. A simples existência de deuses tão parecidos já aponta para isso, mas também podemos observar nos sonhos com temas comuns, em processos equivocadamente associados com "telepatia" e "premonições", e até mesmo nos princípios de formigueiros e colméias de abelhas. Parecemos ter uma alma-grupo, um inconsciente "coletivo"; assim como a somatória de todas as nossas células as transcendem num Ser maior, o Eu, o qual elas não conseguem perceber senão enquanto mito ou "Deus". Lázaro é a égregora, o inconsciente coletivo ou o "deus" de minhas células, cada uma delas um ser tão vivo e independente... quanto Eu.

 

Aceitar ou não a existência de egrégoras, bem como a atuação espiritual identificada com essas, pode ser uma mera decisão intelectual ou opção religiosa, mas não muda o fato de sua influência e existência. Vale para situações mais difíceis de perceber, como a influência coletiva de um pensamento religioso, quando tomado como verdade final.

 

É claro que quanto mais se crê, quanto mais nos identificamos com uma interpretação, mais também a reforçamos e a reproduzimos em nossas
vidas. Entretanto isso não é mero condicionamento comportamentalista, mas sim EXATAMENTE o mecanismo a partir do qual os mitos revestem os arquétipos. Foi EXATAMENTE assim que surgiram todos os mitos, INCLUSIVE os originais. Ou principalmente aqueles, milenares, onde a TRADIÇÂO ORAL só repetia ou enfatizava os aspectos míticos que mais gerassem identificação com quem o conta.

 

Shiva, por exemplo, é transformação e movimento. Se no meio espiritualista universalista brasileiro isso foi ou não reforçado pela leitura de Wagner Borges  (grande referência do meio, e tradutor simplificador deste hinduismo para um público tão ocidental quanto ele mesmo), e a partir dos ensinamentos orais de um e experiências de seu aluno esse aspecto transformador foi mais evidenciado, isso apenas faz com que Shiva seja mais transformação e movimento do que já era, pelo menos entre nós. Ainda que esta transformação vá se adaptando ao contexto local e atual.

 

Podemos ver de outro modo: Há um arquétipo de transformação e movimento, e este precisa ser preenchido, queiramos ou não, em qualquer cultura. Se haverá uma difusão cultural para que adaptemos o ícone de outro povo é apenas detalhe. Não ocorresse isso, recriariamos deuses e mitos com a mesma função.

 

No panteão do Candomblé, Iemanjá ocupa parte dessa função, sendo um equívoco achar que porque ela é das águas sua mudança será sempre calma (Talvez Mamãe Oxum fosse mais apropriada para essa visão das águas tranquilas). Pedem a Iemanjá "soluções", e recebem "problemas" evolutivos.

 

A Índia mais "religiosa", a dos catecismos e cerimônias, é, em grande parte, shivaista. Mas nos meios religiosos de lá Shiva é visto não só como o transformador, no sentido que tememos (perdemos algum apego emocional ou material), mas também como o Pai divino, associado com sua esposa Parvarti, com seus filhos Ganesha e Kartikeya, por exemplo. Para um hindu religioso típico, que sequer tem tantas posses e prazeres para se apegar, este aspecto que destacamos em Shiva não tem a mesma importância ou impacto. Assim, o arquétipo do Grande Pai (Tupã, Jeová) é preenchido mais com Shiva, e as transformações enlouquecedoras ficam mais para, por exemplo, a Kali de Ramakrishna.


Ou seja, depende de contexto, e como se deu a apropriação cultural de cultos sincretizados. Mas o fato é que cada função arquetípica tem seu "mito" e "deus", em todas as culturas da humanidade. Ainda que não sejam exatamente o mesmo em todos os tempos e lugares.

 

O equívoco é achar que o melhor é sempre "o de lá", "o do passado", "o do futuro", o "do lado espiritual", o "do oriente", e que a grama do vizinho sempre é mais verde. Postura idêntica ocorre em espiritualistas - orientais ou ocidentais - que pensam que a realização é sempre a do "mundo" espiritual. Provavelmente, quando desencarnarem, encherão a paciência dos mentores para encarnarem de volta, já que perderam a oportunidade de aprendizado material na Terra por não compreenderem que sua experiência e manifestação ideal - e que mais agradaria a Deus - seria justamente aquela onde e como estivesse, alicerçando-se bem nela para buscar a transcendência, e nunca o contrário.

 

Por outro lado, aqui no ocidente, mais cardinal e fixo, mais empreendedor e mantenedor, em geral mais centrados e resolvidos em questões ligadas à mente, a matéria e ao prazer, (embora deficientes em outras questões), teremos uma maior dificuldade com questões de transformação e desapego. Mas não podemos negá-las, não podemos extirpá-las de nossa existência psíquica. Ao contrário, quanto mais as evitamos, mais "duras" elas se apresentarão. Quando vierem, terão ainda assim seu arquétipo.

 

Para os cultuadores de religiões afro, esta energia transformadora talvez tenha a ver com Iemanjá e suas marés. Para os umbandistas, talvez venha em Exu. Para quem usa o tarô, no arcano da Morte - ou em sua versão mais abrupta, no da Torre.

 

Note pelo exemplo anterior que, na Índia, esse tipo de momento não seria necessariamente associado a Shiva. Mas para um ex-espírita ou ex-cristão, agora adepto do universalismo, assim como para os yogues americanos oriundos do protestantismo, talvez a Ìndia inteira enquanto símbolo signifique esta outra forma de ver a espiritualidade, identificando-se assim com a figura do Pai hindu, Shiva. É para nós tão transformador quanto Kali é para um Shivaista. Não importa. Se não contassem para ele a história de Shiva, se não tivessemos (milhões de nós) construido uma egrégora shivaista local nesse
sentido, pegariamos um outro mito para explicar o fator-sem-forma
(arquétipo) que inegavelmente sentimos enquanto necessidade de limpeza, desconstrução e transformação. Nem que fosse a provação demoníaca cristã, o Saitã hebraico, ou a peia do santo-daime.

 

Portanto, se deus criou tudo, quem criou deus? O arquétipo.

 

Ao contrário do que está na Bíblia, fomos nós quem criamos Jeová, Shiva e Zeus. À nossa imagem e semelhança."



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