>> Colunistas >
ESTAMIRA E O LOUCO DO TAROT (Reflexões sobre Loucura, Psicanálise, Jung e Filosofia)
Publicado em: 15 de janeiro de 2009, 13:14:26 - Lido 6671 vez(es)
--- Em voadores, "brantec" escreveu
> Site com mais informações sobre ESTAMIRA -
> http://www.estamira.com.br/
> Mais do que a vida de uma mulher no subúrbio do Rio de Janeiro, o
> documentário "Estamira", do diretor Marcos Prado, coloca diante de
> nossos olhos uma realidade que causa, de um ponto de vista,
> indignação, pelas sub-condições de vida em que se sujeitam pessoas
> como a personagem retratada; e por outro lado, causa espanto,
> porque nos provoca a seguinte questão: loucos, quem são? <...>
Em uma conversa agradável durante as sessões de psicanálise de ontem (sim, psicanálise pode ser agradável, quase um Café Filosófico customizado), comentavamos eu e o paciente sobre esta questão da loucura e dos sonhos: a fala livre do inconsciente e como este atua em [confront---] harmonia - com a [convenç---] normalidade social.
Ora, o que chamamos de "normalidade" é, na verdade, uma socialização imposta a base de repressões infantis. Seu intuito é o de obtermos e perpetuarmos os benefícios - e neuroses - da continuação social. Podemos compará-la a uma religião, em que o progresso e o consórcio social ocupem o lugar do paraíso prometido - e a educação formal, uma conversão.
Normal não é necessariamente saudável ou natural, mas sim aquilo que está "na norma", dentro da curva de Gauss, sem muitos desvios do comportamento da maioria - que, aliás, muda com o tempo e lugar. Não por acaso, os "manuais de diagnóstico" da psiquiatria precisam ser atualizados frequentemente. Se o que era loucura ou perversão ontem hoje é extroversão ou opção sexual, isto implica que muitas pessoas foram punidas por estarem a frente de seu tempo; e do mesmo modo, chamamos de "loucos" hoje muitos que na verdade serão amanhã nossos pioneiros... ou gurus.
Numa outra visão, um animal domesticável que houvesse sido criado em contato com a natureza, de acordo com a SUA natureza, teria comportamento bastante diferente daquilo que os homens os [forç---] ensinam para que possam ser amados. Voltando às matilhas, por exemplo, alguns cães seriam quase lobos. E os porcos, sem confino e castração, estariam mais próximos de javalis.
E um hipotético ser humano in natura, como seria? Sem a educação social, estaria submetido aos seus instintos e inconsciente. Como os ditos "loucos". Como somos seres de matilha, concordo que provavelmente construiriamos outra cultura com chefes e hierarquias a seguir. Mas neste momento inicial, sem a necessidade de seguir regras gramaticais ou racionais previamente acordadas pela sociedade, diria o que pensa, podendo dar maior vazão ao lado subjetivo de sua psiquê. Em última análise, não teria tantas neuroses, uma vez que não se submeteria aos conflitos oriundos da repressão indispensável para que formemos nosso "conteúdo", nosso "estilo", nossa "classe social", nossa "religião", nossa "família", nossa "maneira de pensar" - que se constitui basicamente de exclusões e negações, em geral selecionados por outros.
Pois o que comentavamos na clínica ontem era exatamente sobre esta condição da dita loucura, quando comparada a o que vem a ser a normalidade neurótica formada pela nossa [domesticaç---] educação social. Ora, o que nos parece loucura é, muitas vezes, alguém que vive de acordo com seus sonhos... literalmente. É óbvio que isto traz "prejuizo social", mas para usarmos este termo temos que admitir que aquela pessoa TINHA que estar funcionando bem na [nossa] sociedade - que, em última análise, não passa de uma convenção.
A questão fica mais complexa quando no mesmo dia conversamos, aqui na voadores, sobre o Rajneesh Osho e as comunidades alternativas que surgiram no mundo [depoi---] junto com ele. Quem já esteve em algumas delas, e eu já estive, acaba compreendendo que por mais defeitos que a comuna tenha, ela nos prova que há outras formas de se viver, desde que queiramos. O que evidencia que esta tão defendida "normalidade social" que nos é tão cara tem componentes completamente diferentes se olhamos para outras culturas, para outras épocas, para outras localizações geográficas, para outros climas - e até mesmo, dentro de uma mesma cidade, tempo e clima, para uma outra classe social. Aquilo que é normal em determinados agrupamentos sociais da periferia seria mal visto no Morumbi, e vice-versa. Determinados valores quase religiosos com os quais eu fui educado em um subúrbio de Belo Horizonte - e que posteriormente enriqueci com o Tao Te King - eram estranhamente mal vistos quando, em um relacionamento anterior meu, eu convivia bem mais com pessoas de famílias tradicionais e [endividad---] endinheiradas dos Jardins e Morumbi.
Há várias formas de se viver, e a do louco não deixa de ser a opção mais, digamos, natural. Como se ele dissesse: porque TEMOS que viver neste modelo se há outros? Se há quem viva em B e não em A, se é aceito que religiões e até bairros diferentes tenham outras constituições sociais, porque não posso então EU escolher viver em Z?
Quanto a esta questão das negações que fazemos e proibições que sofremos em nossa constituição de personalidade achando que fizemos "escolhas", lembro que recentemente li uma matéria sobre uma mulher que jamais se esquecia de nada. Todos os fatos desde a adolescência, cada briga na escola, cada ofensa, com quem almoçou em 23 de Agosto de 1983 ou que roupa alguém vestia no Ação de Graças de 1984. Tudo. Sua reclamação era a de que não conseguia ter uma "personalidade" para se socializar, uma vez que ela - com sua fantástica memória quase patológica - podia notar que aquilo que definia as outras pessoas não eram suas lembranças, mas sim as facetas que resolveram esquecer ou despriorizar.
Imediatamente me lembrei de meus jogadores fabricados no Pro Evolution Soccer ou FIFA 2008, todos "perfeitos" e com todos atributos no máximo. O time Voadores sempre ganha, mesmo tendo um zagueiro carioca gordinho e com falha no meio do dente que usa a camisa 24 (Wagnólia); um atacante estranho com rabo de cavalo branco (Benedictus); um hinduzinho baixinho com ar de mulato e paraiba ao mesmo tempo (Frang); e, é claro, um artilheiro careca de cavanhaque matador que nunca perde um gol (Lazzaroto). Como falamos de idealizações, Lazzaroto tem dois metros e porte atlético, sob o olhar divertidamente desaprovador de minha "namorida" (sic), que sei lá porque prefere esta versão minha de 1m71 e alguns quilinhos a mais.
O fato é que um time de jogadores perfeitos ficou sem graça (a não ser pela versão caricata dos amigos) e parei de fabricar outros (não sem antes [sacan---] homenagear o Dudu, confesso). Preferi completar meu time com jogadores imperfeitos e conhecidos, que sempre tinham mais personalidade. O problema era que aqueles jogadores "perfeitos" nunca tinham o estilo único dos grandes craques internacionais que o jogo traz, que nunca são 100% em nada, mas que justamente em cima destas peculariedades (um não marca tão bem, outro joga melhor na esquerda, outro lança perfeitamente mas não finaliza) é que definem seus estilos, posições e especializações.
Pensando na lição zen do sensei Winning Eleven, lembrei também da fala da Oráculo na Matrix Reloaded, explicando ao Neo que a sua (dela) função inconsciente era exatamente a de introduzir o fator de incerteza na "equação perfeita" do Arquiteto. E era a incompreensão desta incerteza ilógica que nos fazia diferente dos programas e robôs. Refleti que o perfeito é imperfeito, e talvez o que nos permita ser, amar e termos características únicas seja exatamente a diferença entre as nossas imperfeições. Ou, em outra leitura, a pequena porção de [inconsci---] loucura que se deixa manifestar em cada um de nós.
Que ironia, a neurose é a cura, como já previa Jung. Ou, como eu digo, se olharmos do ponto de vista do divino, "o nosso ego é apenas a sombra do Self". E se não formos a maravilha da criação como pensamos, mas sim um pesadelo na mente de Deus, aguardando o nosso esforço de individuação?Não estou certo de que, nesta visão, eu já esteja mais "evoluido" do que o Louco arquetípico.
Outra questão sobre a loucura é o quanto nos incomoda perceber que alguém consegue rasgar os contratos sociais e ser feliz vivendo de acordo com sua natureza, com seus desejos e com suas visões. Como pode a fala de alguém ser subjetiva e simbólica, se o [urbanismo moderno---] mundo inteiro tem que ser tão racional? Isto incomoda, e muito. Melhor segregar. E se o segregado INSISTE em atingir a velhice desta forma, ele nos PROVA que é possível viver fora do sistema, e que DEVE haver algum outro modo que não seja nem o dele nem o meu, em que poderiamos viver, todos ou cada um, em uma maior harmonia e paz. Ora, isso nos faz lançar um olhar desconfiado para nossos deuses e valores, fabricados por nosso estilo de vida para preservá-lo, o que é bastante incômodo. Neste aspecto, não há consolo em saber que o louco perdeu os benefícios sociais. Ao contrário, este fato é um tapa em nossa cara, lembrando que até mesmos estes supostos benefícios da normalidade são efêmeros quando sacrificam nossa natureza e felicidade. Mais louco é quem me diz que não é feliz.
Há várias formas de se viver, e o "louco" é talvez aquele que renega a forma de viver que lhe impuseram, ou que por ela foi renegado. Neste momento, lembramos do louco do tarot, o tolo na colina, o que é louco por ser feliz, já estar no céu e poder voar. Mais louco é aquele que diz que não é feliz; e, se há uma loucura neuropatológica, há também uma "loucura" consciente, a de não se enquadrar em um modelo social, e mesmo pagando caro por isso, preferir viver de acordo com o que se acredita, em coerência com a sua própria natureza. É preciso [culh---] coragem para se viver assim, e não é por acaso que o louco é a primeira carta do tarot, o salto iniciático indispensável para COMEÇARMOS a trilhar o caminho espiritual prático do mago ao mundo. Talvez seja [cômod---] necessário nos prendermos em nossos casulos, por um tempo. Mas sem a "morte" da lagarta, não há borboleta.
Lázaro Freire
Psicanalista Transpessoal
http://www.voadores.com.br/lazaro
"A lagarta rasteja até o dia em que cria asas" (Trilha sonora do filme "A Máquina")
"A marca de sua ignorância é a profundidade de suas crenças na injustiça e na tragédia. O que a lagarta chama de fim do mundo, o mestre chama de borboleta" (Richard Bach)
--