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Clube da Luta - Tyler Durden versus Jung e Freud
Publicado em: 05 de setembro de 2006, 16:59:15  -  Lido 6068 vez(es)



Clube da Luta por Lázaro Freire, fundador da lista Voadores (http://br.groups.yahoo.com/group/voadores/)

Nos incomodamos com aquilo que somos, e com o que não gostaríamos de ser. Aprendermos com o que há de bom, mesmo no que vem de quem é ruim - pois, em última análise, todos somos ruins! E todos somos Cristo, e nos lamentamos no Getsêmani, e pedimos que o cálice seja afastado, mas ao mesmo tempo o provamos. E somos, todos, crucificados.

Isso nos é mostrado no que negamos, e no que usamos para escapar do que negamos. O que nos é muito próximo, ainda que oposto, nos incomoda. Afinal, sempre é o que deixamos para trás, ou para frente. É o que negamos ter sido, ou querer ser. O outro parece ser eu. E o verdadeiro eu, durante este processo, parece ser outro. E, por melhor ou pior que seja, no outro, por ser um outro, sempre mostrará uma nova solução, uma nova abordagem, uma outra válvula de escape e expressão para o que somos - e se é outra, não é a nossa. E se não estamos bem com a nossa, e há algo ou alguém que, ao mesmo tempo em que é igual, irmão, espelho, é também tão diferente... Vai incomodar.

Nos deram espelhos - e vimos um mundo doente
(Renato Russo)

Supondo que quem aqui esteja já com alguma maturidade para ver coisas fortes, e ver seus valores expostos, é um filme que RECOMENDO sim, e muito! O videoclipe de entrada até poderia (e deveria) ser arrancado, para ser passado em palestras conscienciais ou evolutivas. Você não é sua casa... As palavras são fortes, mas com as cenas, o ritmo, tem um impacto arrasante. Obra prima - a meus olhos leigos - de direção, de profundidade, de exposição das máscaras tão grandes e presentes que construímos verdadeiros personagens violentos em cima delas...

Na abordagem clássica de Freud, temos um inconsciente, que nos puxa para nossos recalques, traumas, desvios. Por outro lado, temos um superego, que puxa para o sentido contrário, superior. No meio desta briga, desta luta entre um e outro, entre o domar o inferior sem se perder nas contradições com o superior, estamos no terceiro, o do meio, o ego que somos nós. E, querendo ou não, uma hora vivenciamos estes pólos - que o digam as sombras dos pedófilos. Como no filme, a negação sucessiva leva o personagem à implosão. E daí, ele só sairá vivenciando.

Só a experiência própria é capaz de tornar sábio o ser humano
(Sigmund Freud)

Começa aí a história do filme, nos recalques, nos três homens em um - o que se nega, o que se queria ser em oposição - e um ser, perdido e em conflito, no meio. O que todos vêem e, na verdade, ninguém vê. O que se processava por dentro vem à tona. E se o que há dentro são conflitos, negações e violências... Este conflito de inconsciente e superego pode não ser pacífico. Inclusive para os outros.

O pensamento é a ação ensaiando
(Sigmund Freud)

E como o que se ensaia vai ao palco, o superego Brad Pitt vai trazendo à tona, de forma quase religiosa, quase neurótica. A neurose bem fundamentada traz filosofias, crenças e máximas que tem a força de um dogma religioso.

"É possível atrever-se a considerar a neurose obsessiva como o correlato patológico da formação de uma religião, descrevendo a neurose como uma forma de religiosidade individual, e a religião como uma neurose obsessiva cultural."
Sigmund Freud; Atos obsessivos e práticas religiosas - 1907

Do mesmo modo, a religião fundamentalista traz em si tantas crenças, filosofias e máximas que só é possível compreendê-la como neurose.

A religião é comparável com uma neurose da infância
(Sigmund Freud)

É verdade...

Nós somos os filhos do meio da história, sem propósito ou lugar. Não tivemos Grande Guerra, não tivemos Grande Depressão. Nossa grande guerra é a guerra espiritual, nossa grande depressão é a nossa vida
(Tyler Durden; Clube da Luta)

Jung aperfeiçoou depois os conceitos Freudianos, estendendo este inconsciente - que em Freud era individual - para o akáshico do inconsciente coletivo, adicionando sincronicidades e conceitos quase espirituais, religiões orientais, mitos e arquétipos. Não adianta olhar para fora, apenas. Nem para si só.

O sonho é a tentativa de satisfazer um desejo
(Sigmund Freud)

Mas Jung vai além, e o filme também:

Quem olha para fora, sonha; quem olha para dentro, desperta!
(Carl Jung)

Entretanto, embora mais rico, e (ainda bem) menos sexual que Freud, os elementos do conflito estão ali, presentes da psiquê do ego encarnado.

"O homem que não atravessa o inferno de suas paixões também não as supera. Elas se mudam para a casa vizinha e poderão atear o fogo que atingirá sua casa sem que ele perceba. Se abandonarmos, deixarmos de lado, e de algum modo esquecermo-nos excessivamente de algo, corremos o risco de vê-lo reaparecer com uma violência redobrada."
Carl Jung

Será que não vou me libertar de suas regras rígidas?
Será que não vou me libertar de sua arte inteligente?
Será que não vou me libertar dos pecados e do perfeccionismo?
Digo: evolua, mesmo se você desmoronar por dentro
(Clube da luta)

Ou seja, é preciso movimentar. E não adianta fugir. A sombra estará ali, como ensina Jung. Tudo é movimento, como ensinam os hindus. É preciso esvaziar a taça para receber o novo. Ganha quem perde, tudo passa. Mas passa mais rápido para quem não se apega, para quem enfrenta - até um dia descobrir que apenas se enfrenta. Om Namah Shivaya

Somente após uma desgraça conseguirá despertar
Somente depois de perder tudo, poderá fazer o que quiser
Nada é estático
Tudo é movimento
E tudo esta desmoronando
Esta é sua vida
e ela acaba um minuto por vez
(Tyler Durden; Clube da Luta)

É preciso primeiro perder a religião, que em Freud é ainda a oitava inferior (que não pode ser negada, pois não se pode transcender de fato aquilo que não se viveu), o fundamentalismo, o sinônimo de neurose:

"Já uma vez antes, como crianças de tenra idade, nos encontramos em semelhante estado de desamparo, em relação a nossos pais. Tínhamos razões para temê-los, contudo estávamos certos de sua proteção. Com relação à distribuição dos destinos, persiste a desagradável suspeita de que a perplexidade e o desamparo da raça humana não podem ser remediados. Isto justifica o anseio do homem pelo pai e pelos deuses, que mantém sua tríplice missão: exorcizar os terrores da natureza, reconciliar os homens com a crueldade do destino, particularmente a demonstrada pela morte, e compensá-los pelos sofrimentos e privações que a vida lhe impôs. Assim se criou a RELIGIÃO, da necessidade que tem o homem de tolerar o desamparo, e construída com o material das lembranças do desamparo de sua própria infância, na continuação de um protótipo infantil universal."
Sigmund Freud; O Futuro de uma Ilusão

E então você não terá mais religião - nem neurose. Neste momento, tudo estará em você:

Deus existiu sempre? Que é sempre?
Deus criou-se a si próprio para depois começar a criar o universo?
Onde é que estava Deus quando se criou a si próprio?
E como é que alguém se cria a si próprio?
Do nada, passando do nada ao ser?
Se o nada existiu, tudo que veio depois estava contido no nada.
Mas se estava contido no nada, então o nada não existia
(José Saramago)

O personagem do Clube da Luta descobre isso, vive a sua neurose como religião, mas sua neurose quase religiosa fala da não-religião quase neurótica:

Aprenda a viver, descanse quando morrer. Tudo que você precisa está dentro de você
(Tyler Durden; Clube da Luta)

Ocorre que, se tudo estiver em você, é necessário uma nova análise, pois "tudo" é muito mais do que disseram que você era. Se tudo está em você, você é Deus, e esta divindade também está em você. Perdemos tudo. Até a fé. E, na descrença, a encontramos.

Quando tudo está perdido, sempre existe uma luz
(Renato Russo)

Tyler diz que as coisas que nos pertencem acabam tomando conta de nós. Só depois de perder tudo é que ficamos livres para fazer qualquer coisa
(Tyler Durden; Clube da Luta)

Mas neste momento, só resta o Deus que há em nós.

"E sobrevivi,
Por ser muito mais que o ser fugaz das tramas que criei
Hoje sou muito mais
Do que acharam que eu deveria ser
Sei que estar aberto
É estar bem longe da ferrugem a corroer
Há muito deixei para trás o meu primeiro passo rumo ao infinito
Aonde o vento me levar
Nada nem ninguém me impedirá de experienciar!!!"
Naviterra; Não Olhar Para Trás

Após esta negação, sobrevivemos. E, no nada, encontramos o tudo. É hora de uma outra oitava para vivenciar o mesmo religioso, psicológico. Somos mais que um.

Tudo o que aprendi levou-me, passo a passo, a uma inabalável convicção sobre a existência de Deus. Eu só acredito naquilo que sei. E isso elimina a crença. Portanto, não baseio a Sua existência na crença... eu sei (grifo original) que Ele existe
(Carl Jung; Entrevistas e Encontros)

E, mesmo chegando nesta esfera superior, ainda assim a necessidade prática citada por Freud continua presente, como estará presente provavelmente em qualquer outra oitava.

Nenhuma circunstância exterior substitui a experiência interna. E é só à luz dos acontecimentos internos que entendo a mim mesmo. São eles que constituem a singularidade de minha vida
(Carl Jung; Entrevistas e Encontros)

O que era conflito se torna religião, mas é ela quem nos levará para o autoconhecimento, também. Pode ser que arrancar a árvore arraigada ao solo seja traumático - mas apenas onde as raízes forem muito profundas. Afinal, não há nada de errado em ser uma árvore - a não ser quando esta morre e seca a cada dia por agora desejar caminhar. Neste momento, Freud e Jung são aplicáveis. A experiência do filme é sexual também, é violenta também, é de negação do passado também. Com a correta ressalva de que, no fundo, é menos sexual do que parece (a não ser que tenhamos, como sugerido por Jung a respeito de Freud, recalques nesta área, e aí vejamos erros no sexo de todos), e mais COLETIVO do que a ciência cartesiana poderia admitir.

"Freud nunca se interrogou acerca do motivo pelo qual precisava falar continuamente sobre sexo, porque esse pensamento a tal ponto se apoderara dele. Nunca percebeu que a 'monotonia da interpretação' traduzia uma fuga diante de si mesmo ou de outra parte de si que ele teria talvez que chamar de 'mística'. Ora, sem reconhecer esse lado de sua personalidade, era-lhe impossível pôr-se em harmonia consigo mesmo. (...) Ele tornou-se vítima do único lado que podia identificar, e é por isso que o considero uma figura trágica: pois era um grande homem e, o que é principal, tinha o fogo sagrado."
Carl Jung

O filme também avança. Neste nível Junguiano, as ilusões do filme começam também a interferir em comunidades. O que era apenas religião pessoal torna-se manifestação arquetípica, passa a ter vida própria. O inconsciente e o super ego não mais se confrontam em quatro paredes, mas se relacionam, convencem os outros, lideram, arregimentam. Afinal, somos todos um só, não somos? O que seria louco até mesmo dentro de nós - se nós nos enxergássemos - passa a ser aceitável em um mundo externo também em busca de identidade. E embora parta do sexual, como na análise Freudiana, o filme aqui começa a trazer intuições, sincronicidades, como se todo um fluxo levasse o personagem ao seu "destino". Somos todos um só, os vários que somos relacionam-se com o coletivo. E se tudo é coincidência, nada mais é coincidência. O filme fica mais Junguiano, coletivo, ao extrapolar os conflitos do ego/eu.

A dialética ego/eu acontece primeiro através do pensamento analítico (reflexão). Quando este se esgota, a energia psíquica reflui do Eu para o Ego. Então nasce uma Intuição
(Carl Jung)

Mas como da tese e da antítese se faz a síntese - como ensinava Marx - o filme vai além do lado "mal e bom" da psicanálise, e se torna de certo modo Gestáltico (matar o pai) ou talvez altamente Lacaniano.

"Não há outra metalinguagem senão todas as formas de canalhice, se designarmos assim as curiosas operações que se deduzem do seguinte: de que o desejo do homem é o desejo do Outro. Toda canalhice repousa nisto, em querer ser o Outro - refiro-me ao grande Outro - de alguém, ali onde se delineiam as figuras em que seu desejo será captado."
Jacques Lacan

Afinal, Lacan é também o mal-humorado que, ao não querer "baba-ovos", acaba reverenciando sua origem - sem perceber que se tornara a origem de novos. É o mesmo que, ao matar o mestre que é, acabou por matar o Pai.

Aí, Freud se contradiz. Tudo indica - aí está o sentido do inconsciente - não só que o homem já sabe tudo que tem que saber, mas que esse saber é perfeitamente limitado a esse gozo insuficiente que constitui que ele fale
(Jacques Lacan)

Mas ao contrário da Gestalt, ao mesmo tempo, contraditoriamente descobre que volta, oroboros, ao mestre que teve. E lá está, como sempre, o mesmo Pai, renascido das cinzas como outro animal da mitologia que Jung estudou:

Vocês podem ser Lacanianos, eu sou Freudiano
(Jacques Lacan)

Há muito pré-conceito contra este filme, porque, não sei se você já leu nos sites, é um filme violento; o nome já choca; o videoclipe (sen-sa-cio-nal!!!) de entrada do filme choca ainda mais que o nome; o filme como um todo choca mais e mais ainda que o clipe; as pessoas são despeitadas com o Brad Pitt; cutuca as pessoas na sua luta de ID x Super-ego; questiona valores hipócritas e acomodados, e, mais grave ainda (pasme!): Um maluco já matou gente na sessão deste filme, metralhando vários, no shopping Morumbi!!!

Curioso é que, independente da sessão que ele escolheu para fazer isso ser a do Clube da Luta, na verdade o psicopata em questão simulou, em detalhes, os atos do filme "Pânico" (Este sim um tipo de filme umbralino, não raro mediúnico-negativo). Curiosamente, muito "espiritualista" assiste e gosta - curioso isso de virar a cara para os conscienciais e pegar os de terror, que geram o que a consciência critica, revela e resolve... Mas a sociedade vai torcer o nariz para o Clube da Luta, e locar o Pânico 2, 3 e cia. Assediadores agradecem. Eles também acham esta coisa de questionar, discernir e remover hipocrisias algo "muito violento".

O fato é que quem chegou até aqui, após passar por Humor, Cinema, Consciência, Freud, Jung e Lacan - vendo em tudo uma só coisa - merece sim ver o filme, se ainda não viu. Para você, que conseguiu ler, eu também RECOMENDO.

Afinal, você já sabe que:

Você abre a porta e entra
Está dentro do seu coração
Imagine que sua dor é uma bola de neve que vai curar você
Esta é sua vida
É a última gota pra você
Melhor do que isso não pode ficar
Esta é sua vida
Que acaba um minuto por vez
Isto não é um seminário
Nem um retiro de fim de semana
De onde você está não pode imaginar como será o fundo
Somente após uma desgraça conseguirá despertar
Somente depois de perder tudo, poderá fazer o que quiser
Nada é estático
Tudo é movimento
E tudo esta desmoronando
Esta é sua vida
Melhor do que isso não pode ficar
Esta é sua vida
E ela acaba um minuto por vez
Você não é um ser bonito e admirável
Você é igual à decadência refletida em tudo
Todos fazendo parte da mesma podridão
Somos o único lixo que canta e dança no mundo
Você não é sua conta bancária
Nem as roupas que usa
Você não é o conteúdo de sua carteira
Você não é seu câncer de intestino
Você não é o carro que dirige
Você não é suas malditas calças
Você precisa desistir
Você precisa saber que vai morrer um dia
Antes disso você é um inútil
Será que serei completo?
Será que nunca ficarei contente?
Será que não vou me libertar de suas regras rígidas?
Será que não vou me libertar de sua arte inteligente?
Será que não vou me libertar dos pecados e do perfeccionismo?
Digo: você precisa desistir
Digo: evolua mesmo se você desmoronar por dentro
Esta é sua vida
Melhor do isso não pode ficar
Esta é sua vida
e ela acaba um minuto por vez
Você precisa desistir
Estou avisando que terá sua chance

(Tyler Durden; Clube da Luta)
--
Lázaro Freire
lazarofreire@voadores.com.br


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